Uma fuligem foi embaçando a beleza;
uma crosta na retina cegando o povo
– logo se viu um país irreconhecível
com ídolos ocos e sem horizontes
(havia tanta identidade nessa gente).
Aonde anda o bruxo do Cosme Velho
mais conhecido por Machado de Assis
que tinha por ofício coser entrelinhas
de fina ironia ao se ocupar do humano?
(Harold Bloom o chamou de milagre).
Aonde anda Nabuco e sua elegância,
num momento de tanta incivilidade?
– brutalidade ostentada em carne viva
(todo o país no reino dos medíocres).
Por onde andam Rui, José Bonifácio?
Ulisses Guimarães, por que te foste?,
se aqui ficamos órfãos de tua lucidez,
de tua intransigência pela democracia.
Aonde andam Chiquinha Gonzaga,
Clarice Lispector, Cecília Meirelles,
Esperança Garcia, Carlota Pereira,
Maria Firmina dos Reis e a Pagu?
É bom lembrar de Nise da Silveira:
loucura e arte flutuam na realidade
(artistas e loucos criam demônios)
– eles precisam, pois, de liberdade.
Cadê os nossos índios, quilombolas?
Continuam os negros nas serventias?
Estado na vanguarda do anacrônico:
a colônia foi alçada a país periférico
e se orgulha tanto da globalização.
Por onde foi o rico folclore da gente?
(o bumba meu boi, tambor de crioula,
o maracatu leão coroado, as cirandas):
alguém ainda sabe de Câmara Cascudo?
Sim, havia tantas lendas antes do Mickey
(saci-pererê, mula sem cabeça, curupira,
lobisomem, boitatá, boto, bicho-papão):
eles habitavam os quintais da infância.
Alguém viu Luiz Gonzaga e seu forró?
(alguma notícia do forró não estilizado?)
Faz tempo não me falam mais de Sivuca
(De Dominguinhos ainda se lembram).
A boa nova é que Wilson Seraine resiste:
a procissão das sanfonas ilumina Teresina
nos últimos ventos que inauguram agosto
na data em que Gonzagão chegou ao céu.
E o samba, alguém sabe se sobreviveu,
além do espetáculo ofertado aos gringos?,
além das mulatas e musas de silicones?
– itens dos caros pacotes de carnaval.
Tanta saudade de Pixinguinha, de Noel,
de Villa Lobos e seu trenzinho caipira
que vai com o menino, a vida a rodar
– lá vai o trenzinho com Ferreira Gullar.
Villa, não queira saber da Mata Atlântica
– da Amazônia melhor talvez nem falar:
diz ao Tom que o Jardim Botânico resiste,
mas, sinceramente, não se sabe até quando
– a ordem por aqui é tudo devastar –
Sim, te peço que não comente essas coisas
com Chico Mendes, a irmã Dorothy Stang
e seja discreto com Dom Pedro Casaldágila
– reconheço a inutilidade desse meu pedido:
Dom Phillips e Bruno levam notícias trágicas.
As igrejas barrocas andam em silêncio:
como fazem falta teus Sermões, Vieira,
depois bem adornados por Aleijadinho,
que, por ironia, deu perfeição às formas.
De contraponto existia Drummond
agnóstico e melancólico-esperançoso
trazendo os sinos roucos nos sapatos
e caminhando sempre de mãos pensas.
Os sertões das Gerais brotaram veredas
palmilhadas por João Guimarães Rosa:
não parece nome de gente, mas verso –
nem é mesmo verso, mas encantamento.
Os sertões sabem das entranhas do povo,
conhecem Canudos, a miséria subterrânea:
o país real inexistente nos gélidos gabinetes
que tanto dilacerou Euclides da Cunha.
E essa miséria econômica aqui persevera
e mais agravada pela mendicância cultural:
o país nunca conheceu a democracia social,
senão o fosso das desigualdades impiedosas
com uma massa de tantos zeros econômicos
(pois creiam, esse país se quer modernizado
por isso o poder lhe impõe o neoliberalismo
– aqui a filologia com a economia se atropela:
como neo, se nem liberalismo alcançamos?
Não teria que o Estado-social lhe anteceder?).
De Minas veio o presidente bossa-nova
e trouxe consigo o gênio de Niemeyer
para descortinar o futuro de um povo
fazendo a poesia sustentar o concreto.
Sim, tínhamos ainda Manuel Bandeira
evocando o Recife, os seus pregoeiros,
dona Aninha Viegas, os seus mexericos
e o cão sem plumas de João Cabral.
Ah! – o futebol, essa paixão nacional
contava com Garrincha e seus dribles
a entortar os Joãos e colorir o mundo
tal criança em fazer a alegria do povo.
Em Porto Alegre habitou um certo anjo
(não era um anjo qualquer: fazia versos)
e atendia pelo nome de Mario Quintana,
mas bem podia ser chamado passarinho.
Não cabe no poema toda historiografia,
por isso aqui minhas escusas da ausência
de tantos que formaram o painel do país
(assim peço que consulte Wilson Martins
que se ocupou da inteligência dessa gente).
Tanta falta você faz, meu caro Ariano,
em defesa do país que se perdeu de si,
que entregou sua essência ao marasmo,
dominado pela ditadura do mal gosto.
por onde anda o país do futuro?
por onde anda o país do passado?
Brasil, por onde andas?