Guardo um cheiro de mofo nos porões de minha alma:
se o revelar estou arruinado, pois é o que resta da sobra
do que digo ser, com que ainda pareço, o que não traí:
aquilo que ainda criança voa sobre o mundo das coisas
onde tudo se transmuta em beleza aos olhos de Heráclito:
guardo o azul que grita entre as nuvens,
que flutua no maravilhoso do banal,
no repetir da mistura de gases e cores
indiferente à brutalidade dos homens.
Guardo o menino que descobriu na palavra a salvação do mundo:
a palavra abstrata nomeando as coisas reais e dando sentido à vida:
mergulhando o espanto em cumplicidade de beleza e pó.
(…) tudo gira e se refaz mesmo na permanência dura das coisas
que se desgastam em reação com o invisível oxigênio e fuligem:
sopram partículas minúsculas que se misturam a gases
e ontem, hoje e amanhã se encontram e recitam de novo a vida
que se perde entre meus dedos como água
e desejo represado que se camufla em sonho
sabendo que a arte ressuscita os mortos.
Guardo ainda o menino que puxa pela perna do adulto pragmático
e lhe mostra as coisas mínimas como fagulhas iluminando a vida:
ali tua ingenuidade, acolá tua vontade de mudar o mundo,
dentro de ti tua província que habitou teu universo inteiro
(a cidade de tua infância, poliedro todo colorido)
De tudo isso o que sobrou
além das máscaras que o teatro da vida te ofertou?
O menino espreitando o azul em tonalidades de solidão.