MÃO DUPLA
O feminismo é uma lanterna cuja luz é lilás.
(Carla Cristina Garcia)
Nas ideias gravita o mundo, marquesa de Rombouillet,
pois a vida se inventa nos salões e nos guetos imundos
(preciosa vida a que nada lhe basta e sempre nos indaga
sobretudo acerca dos caminhos indicados pelo mando).
Por Safo, a grega, e por ti, Madeleine Scudéry, sonho
e beijo os olhos de todas as mulheres que se rebelam:
com eloquência e garra rasgam os novos caminhos
para que haja a esperança, o amanhã, outro mundo.
Porque foi construído o tempo, a vida se faz em ondas
(por ondas em espiral as mulheres tecem sua história)
e perpassam no deslizar da existência a tocha da causa
de modo que a chama continue flamejando no eterno
– belo, forte e delicado esse balé das salamandras.
A modernidade também consagra o arcaico, Rousseau:
monsieur Rousseau, qual igualdade sem as mulheres?,
qual teu conceito de universalidade?, pobre Rousseau.
Mas há sempre alguém andando pela contramão:
– aqui te abraço comovido, Poulin de la Barre –
por nos lembrar que o pensar não tem sexo,
inaugurando, assim, a primeira onda do feminismo
(às vezes é preciso ser cartesiano para dizer o óbvio).
A mulher nasce livre e igual ao homem em direito –
quem daria a vida por este verso, Olímpia de Gouges?,
– por essa bela ilustração capaz de iluminar as trevas?
Sim, de há muito tu sabias que a morte seria inevitável
(por ter esquecido as virtudes que convém a teu sexo
e por haver te intrometido nos assuntos da República,
– se fosses frívola, ao gosto do teu pai, tudo iria bem):
tinhas ciência de que a morte seria gloriosa tal a vida –
a vida que mescla ideal e luta não se perde na morte:
foste poesia que ofertou carne e sangue ao mundo,
mas a misoginia é erva daninha que abafa a luz, a flor
(ainda quando essa flor se entranha no suor da luta)
e por isso continua asfixiado teu mais belo poema,
– Declaração dos direitos da mulher e da cidadã –
(mesmo as mulheres que nunca ouviram falar de ti,
te amam de todo coração: uma mártir é eternidade).
Tua beleza clássica, Mary Wollstonecraft, reivindica
não o olhar contemplativo, mas o concretizar da vida
– da vida que pulsa no desejo do ser inconformado
de conviver subjugado, sendo teu destino liberdade:
reivindicar, sempre reivindicar: fora disso não há vida.
E a vida é conviver e convier é todo celebrar da igualdade.
Mary, conseguiste descortinar o futuro e antecipar a luta:
desde teu gênio, o conceito de gênero reverbera bandeira
e as ações afirmativas começaram a tremular para sempre.
No século XIX o feminismo borbulha na questão social
e inaugura a segunda onda que deseja alcançar o mundo
moldado na selva do capitalismo e da revolução industrial:
as operárias são meias-forças – frágeis desde a ontologia:
era preciso um sopro a varrer a névoa das falácias todas.
Sabiam as sufragistas que emancipar reclama ir ao poder:
era preciso chegar à Ágora, porque falar nos faz humano,
porque votar nos faz sujeito, porque a voz toca a liberdade.
Elizabeth Stanton, a declaração dos sentimentos é poesia,
documento que comove pela sensibilidade de uma causa
(porque antes do racional, as sensações arrebatam o ser
e nenhum movimento prospera sem o hálito do sensível).
Eis que veio a décima nona emenda a brilhar no horizonte:
embora de todas as mulheres da declaração de Seneca Falls,
somente tu, Charlotte Woodward, estavas viva para votar
(mas não importa, porque teu voto era o símbolo coletivo:
existir na medula é semear para que outros possam colher
(nos olhos das sufragistas a palavra solidariedade foi chama
que luziu tal um cometa a romper as trevas por 80 anos).
Preciso beijar teus pés, tuas mãos, teus olhos, Sojouner Truth:
preciso, sobretudo, adornar tua pele, causa de tanto dilacerar
(Sojourner, teu nome trouxe teu destino, verdade viajante):
ser mulher e negra constitui o épico da saga excludente.
Sojouner, arrancaram tua carne e levaram os teus filhos,
vendidos como escravos, mercadoria, objeto, peças, nada.
Mesmo sangrando na alma, continuaste a tecer a verdade
e a viajar na história, porque tua voz nunca mais se calou.
Tua voz se entrelaça com tantas outras vozes femininas
a compor a sinfonia da liberdade que ecoa desde sempre.
Enquanto lutavas, em 8 de março de 1857, 129 morriam
(morriam queimadas em uma fábrica em Nova York).
Morreram por que também lutavam contra o arbítrio
contra a desigualdade que sempre latejou na história.
Na fábrica têxtil as mulheres manejariam tecido lilás
(dizem outros que a fumaça do incêndio era violeta):
não saberemos: a história dos oprimidos é incógnita.
Fato é que o lilás é a cor do feminismo – flor violeta.
Nenhuma cor poderia significar melhor as mulheres:
cor de menor cumprimento de ondas de luz visível
(quanta ironia: no invisível vidas se movimentam)
por isso de tantas ondas o feminismo se vai espraiando
– ademais o lilás se forma da mistura do vermelho e azul:
o vermelho pulsa no sangue e o azul vai ao infinito
– movimento de paixão e fluxo contínuo –
Contigo, John Stuart Mill, me reconciliei com a espécie:
teu esforço intelectual é vida ao lado de Harriet Taylor
(teu utilitarismo flana feérico no núcleo do poético)
Onde estão teus detratores, galhofeiros e obscuros?,
– ao ironizar que não se faz reforma por significantes
(trocar homem por pessoa não faz a mudança social
– somente os espíritos burilados sabem das sutilezas).
Obtusos, o significante pessoa celebra nossa unidade,
faz cintilar nossa essência, nossa gênese mais visceral.
Por honestidade, caro John, Harriet estava a tua frente:
a igualdade há que ser completa, inclusive no trabalho.
De qualquer sorte, tu me enches de orgulho, John –,
pois tua obra, a sujeição da mulher, é nossa mea-culpa
– culpa inteira de tantos séculos envoltos em sombras.
No entanto, John, nós nunca sentiremos a dor feminina
(podemos saber, mas nunca sentir na carne, nos ossos,
na alma, onde lateja a injustiça do excluído sem sentido,
do braço covarde que açoita o corpo, templo do digno
e da palavra que pisa a alma até nada sobrar do humano).
Mesmo com teu alerta, Fourier, o socialismo se fez surdo
– o problema da mulher vai além do dogma econômico –,
a economia move o mundo, não os espíritos mais rebeldes
(nem o socialismo utópico foi capaz de sonhar além-muro:
sequer reivindicou a justa divisão sexual do trabalho).
As mulheres não se abateram, desde o liberalismo, traídas
(todos os arranjos de poder lhe tomaram a pureza em flor –
lhes devolveram as mãos em chagas cravejadas de espinhos),
mas elas continuaram, continuaram e continuam sempre:
civilizar o mundo é a derradeira esperança da vida.
O intenso dos teus olhos pousou no infinito, Flora Tristan,
para espargir coragem diante do mundo inteiro contra ti
(homens e empresários, donos de mulheres e operárias
te taxavam subversiva – Flora, tu afloras emancipar).
Clara Zetkin, melhor organizar as mulheres mundo afora
– convergir nas diferenças foi teu legado de sabedoria –
(viste que os direitos se urdem em exercício de amálgama,
formando um sedutor e infindável poliedro colorido).
Quando olho teu retrato, camarada Alessandra Kollantai,
me atinge a alma o indagar nas entranhas de todo existir:
o mais marcante é tua capacidade de criticar os aliados
– por isso soubeste que igualdade não apenas se declara,
exige o desafio de construir uma joia em sutilezas:
arte de encaixar os diferentes no concerto da harmonia
(igualdade, lapidar de diferenças, inadmissível ao desigual).
A vida deve ir além do conjugar verbos de manutenção
– arte de desconcertar, driblar, transbordar, reinventar:
eis o fantástico que temos nas mãos: o que esperamos?,
talvez seja isso a nos ensinar, cara Emma Goldman,
nessa tua pose de tão inquietante serenidade.
(Proudhom, teu anarquismo não aprendeu no feminino):
o anarquismo não veio resolver, mas revolver raízes.
Estou contigo, Emma: no interior do dominado, o poder:
liberdade, flor que desabrocha no espírito e ganha o mundo
(deportada, Emma, tens abrigo eterno nos nossos corações).
Simone de Beauvoir, porte clássico e moderno, nos ilumina
e uma nova onda do feminismo volta a inflamar os desejos.
(mas tu não te sentias inferiorizada na tua condição feminina).
É assim mesmo, amiga: os paradigmas se tornam sutis –
quase imperceptíveis no desfilar dos engenhos do poder
(o androcentrismo formata o mando desde o útero):
se há um ser assimétrico na espécie, o feminismo respira
(sublime neologismo, madame Beauvoir: heterodesignação
– elevada estética e perverso significar do velho símbolo):
Estamos impregnados de mitos que não indagam: por que?
(assim também se formou a mística feminina, Betty Friedan):
mulheres foram se tornado um não-ser sem saber o porquê.
Será, Simone, que perceberam a ironia do segundo sexo?
Seguramente não: a prepotência exige o elã da indiferença:
Murasaki Shikibu escreveu o primeiro romance no mundo,
exatamente em 1010, no Japão – e quem tomou ciência?:
acaso algum leitor do Dom Quixote sabia de tal feito?
A Santa Inquisição jogou ao fogo as mulheres-bruxas
e ninguém lembrou da teologia de Hildergard von Bingen
– Quando Adão olhou para Eva, se encheu de sabedoria –
(esquecidos tua teologia e teu livro de medicina composta,
ainda que seja considerado a base da medicina ocidental).
E se tu conheces Newton, te apresento Emile de Breteuil,
quem introduziu a física no universo da epistemologia.
Foi alguém do segundo sexo, Marie Slodowska Curie,
quem recebeu o nobel em dois ramos do conhecimento
(laureada em física em 1903 e em química em 1911).
Até quando os livros de história vão sonegar a verdade?
Segundo sexo? Deliciosa ironia, madame Beauvoir.
Era preciso, Nísia, abrir veredas nessa floresta tão fechada
e a palavra – ao buscar a verdade – ilumina até os trópicos
(trópicos que se perderam da luz e urdiram tantos escravos).
E os direitos nunca foram dados, mas reconhecido na luta:
por isso, Bertha Lutz, tens no nome teu destino de guerreira
(é preciso formar o poder para no mundo ser sujeito
e não se sujeitar, porque dignidade a gente conquista).
E porque a vida tece a liberdade em existências encadeadas,
coube a ti, Mietta Santiago, reivindicar votar e ser votada
(entendeste que a vida não serve ao direito, antes o inverso:
onde não está proibido, o direito viceja a todo indivíduo).
E lá foi Carlota de Queirós escrever a constituição de 1934.
Pagu, teus olhos melancólicos indagam dos dribles da vida
(esses teus olhos no retrato respiram ainda nossa angústia
– tantas vezes presa, sempre foste liberdade a celebrar).
Laudelina de Campos Melo, quem ainda sabe de ti, amiga?
– talvez historiadoras eruditas ou juristas justrabalhistas
de gosto invulgar venham lembrar que no velho ano de 1936
criaste a primeira associação dos trabalhadores domésticos.
Do simples ao sofisticado o feminismo se engendra no Brasil,
por isso aqui te invoco e sou todo louvor, Rose Marie Murano:
acaricio tuas mãos com todo afeto por tudo que escreveste,
por tudo que fizeste publicar – a todos a quem desta voz.
Curioso, que no país cordial onde se cultiva fácil as amenidades,
seu solo está encharcado de sangue, dor e lágrimas das mulheres:
era preciso denunciar, gritar ao mundo corpos e almas dilacerados
(mesmo tarde, ainda que muito tarde, a liberdade precisa florescer)
Maria da Penha, mulher de ferro, flor e luz, nós te seguimos.
E na periferia do país desconhecido de si mesmo, há história:
Maria Firmina dos Reis, o que os maranhenses sabem de ti?,
– talvez o que saibam os piauienses sobre Esperança Garcia.
Quem em Pernambuco libertário sabe de Bárbara de Alencar?,
que lutou bravamente pela independência desse obscuro Brasil,
a primeira prisioneira política desse país ignorado de si mesmo.
De Golda Meir, primeira-ministra de Israel alguns ouviram falar,
mas e de dona Noca Rocha Santos, a Golda Meir do Maranhão?
Quando chegará a hora do Brasil testemunhar por suas mulheres?
Assim como nascem as cidades: becos, ruelas, ruas e avenidas,
essas mulheres todas se entrelaçaram e foram cosendo a vida
(ainda que existindo nos quadrantes mais distintos do tempo):
com elas no mundo anônimo e profundo tantas outras Marias
(porque de mulheres ilustres e desconhecidas a história se faz)
trafegaram diferente nos becos, ruelas, ruas, feiras e quintais.
Na cidade dos homens, as mulheres andam pela contramão
e não por rebeldia, Christine Pizan, antes por força do hábito:
na cidade das mulheres todos os caminhos são de mão dupla
para alertar os homens: precisamos conviver na mesma cidade,
feitos do mesmo barro, da mesma fragilidade em essência
– e se andarmos em mão dupla podemos nos encontrar,
podemos nos mirar nos olhos, podemos nos dar as mãos
talvez tocar a felicidade, triunfo último do nosso efêmero.