HISTÓRIA DA VIDA ADULTA

QUESTÃO PREJUDICIAL
Para se entender as mulheres faz-se necessário estudar a brisa e os terremotos.

PORNOGRAFIA POÉTICA LUSITANA
É tão pornográfico que quando pronuncia a palavra fado, imagina as vogais a dançar.

NO FIM DO TÚNEL
Nos porões de minha alma, há abismos insondáveis, onde um vaga-lume pisca, pisca, desesperadamente pisca sem direção e só a poesia pode salvá-lo.

O RIO
O amor tal qual o rio vai fluindo sem saber que encontra o mar.

AO FECHAR O DOM QUIXOTE
Ah, quem me dera ser levado a sério como louco.

CALMARIAS NAS CARAVELAS
Quero o amor das calmarias nas caravelas soprando devagar rumo ao enigma.

PÁSSARO
Sou um pássaro: adoro o ninho, mas não aceito gaiola.

FLUXO
No instante em que meu coração parar, em algum lugar uma flor está se abrindo.

A SABEDORIA DA IGNORÂNCIA
Escrevi um poema denominado Lápide de um magistrado: “─ Senhor, por que julguei estes homens?, não são eles meus irmãos em fraqueza e pó” Um leitor comentou “ ─ Ora, que bobagem! É que a justiça para ser boa deve começar em casa.” Diante da resposta pensei: ─ Senhor, por que não me deste a sabedoria da ignorância? Teria me poupado de tantas angústias.

DISPENSA
Os poetas foram dispensados de ir à missa, porque estão sempre em confissão.

REINVENTO
O vento, tal a vida, se reinventa na repetência do sopro.

FRANCISCO DE GOYA
Goya, tuas sombras iluminam os porões de minha alma.

INDEFERIMENTO
Não peça ao poeta que aterrisse, que desça das nuvens: no máximo vai andar como um passarinho de asas cortadas.

O COLIBRI
O colibri, suspenso na brisa, veio à janela dizer que a beleza existe.

HISTÓRIA DA VIDA ADULTA
Aí o príncipe garboso, generoso, atencioso, amante das artes, casou e virou sapo.

RETRATO
Um dia, todos seremos retrato ou talvez nem isso.

ESTACIONAMENTO ROTATIVO
A verdade é a dúvida que estacionou.

CANTADA DO DESESPERADO
Nos teus olhos mora a luz do fim do túnel.

A SOLIDÃO DA SOLIDÃO
A solidão é a mais fiel das companheiras: a arte, a maior fidelidade da solidão.

INSÔNIA
Guardei tanto e tantas manhãs de minha infância que não consigo adormecer.

O ENCONTRO
O verso não é um achado, é o encontro com a beleza.

CLÍMAX DO POETA
(…) acontece quando fica sem palavras (…)

OSTRACISMO
(…) andava tão esquecido que a morte lhe levou por engano (…)

PANDEMIA
Os versos precisam ser curtos: não há mais paciência no mundo.

DOIS HOMENS NA PRAÇA
O primeiro deles dobrando o jornal pergunta, indignado:
Tens visto a política?
Não: tenho ido ao teatro.

O DIREITO NO DIVÃ
A hermenêutica jurídica é a psicanálise da norma.

CATA-VENTO
No verão, o cata-vento adoraria enxugar gelo.

BÁLSAMO EXCLUSIVO DA MENTIRA
Não tenha remorso em mentir: diga sempre que a gorda está magra; o feio está bonito; o cafona, elegante, é que sou um grande poeta: são essas pequenas mentiras que fazem a vida cintilar (…) Ah, e continue tirando fotos sorridentes nas redes sociais.

DIDÁTICAS MANHÃS
Didáticas manhãs de minha infância que me ensinaram o infinito na província.

DEFESA PRÉVIA AO AUMENTO DE PREÇO
Disse ao meu analista: ─ Uma das coisas mais baratas do mundo é a psicanálise: pena que não posso lhe pagar mais e carrego comigo essa culpa sem tamanho.

IMPLACÁVEL
O reverso do tempo é ele mesmo.

PISTA
Sou um otimista que perdeu a lanterna no fundo do poço.

TALVEZ POR ISSO
Escrevo para que o crepúsculo não morra solitário.

A VERDADEIRA MORTE DO FOFOQUEIRO
A morte física do fofoqueiro não é nada. Morrer para ele é não voltar a ter com os vivos e não poder contar as novidades do mundo dos mortos.