Minha mãe puxava água do poço numa polia
e passava as roupas num velho ferro de brasa;
tudo em sua vida era o ciclo de noites e dias –
as noites eram apenas noites e suas lamparinas,
os dias somente dias, o labutar debaixo do sol.

Por seu turno, meu pai habitava idêntico palco:
esmerilava o sol dentro dos negócios repetidos;
à noite andava pela cidade guiado pela lanterna:
por onde andava, o que pensava, o que resolvia?
(dentro da noite habitamos entranhas, sombras).

Em meus pais o sobreviver era o belo da vida –,
palmilhar ancestral da existência em concretude
(resignados, cumpriam o destino e o calendário).

Homens e mulheres tinham distintas liberdades:
os homens iam ao bar, a lugares não revelados –
as mulheres à igreja a se confessar com o vigário:
nunca compreendi quais eram os seus pecados –
será que era possível confessar pecados alheios?

Meus olhos indagaram dentro dos dias e noites,
sobrevoaram a extensa muralha, viraram poesia
(meus olhos foram a renúncia de certo destino):
rejeitei homens e mando na esperança de amar.

A minha alma se revolveu dentro do espanto –
todos aqueles códigos obtusos à minha agonia:
a mim tocou esse verso débil e o mundo feroz,
ardendo de angústia e beleza entre noites e dias.