Escrevi um epigrama intitulado Algumas inutilidades com o seguinte conteúdo: “Na última faxina encontrei algumas inutilidades: a) carteira de trabalho; b) título de eleitor; e c) um toco de vela”. A minha intenção era bem prosaica: tentei me referir ao desemprego, à minha falta de opção política, igualando a carteira de trabalho e o título de eleitor a um objeto desprezível como me parecia ser o toco de vela. Mas perguntei à minha amiga Tereza Bom Fim como ela tinha interpretado esse aforismo. Ela me disse que esses três elementos mencionados formariam a trajetória de uma pessoa. Imaginou uma viúva muito amorosa que, revirando uma gaveta numa faxina, encontrou esses objetos. A carteira de trabalho representa o tempo de atividade laboral do marido que tanto lutou e não conseguir deixar bens aos herdeiros. Com o título de eleitor participou de tantas escolhas e o país pouco ou nada mudou. E o toco de vela simboliza as várias promessas feitas (e que suas súplicas não foram atendidas). Então a partir de hoje, quando alguém me indagar o que quis dizer naquilo que escrevo, vou me limitar a responder: ─ Pergunte a Tereza.
Ah, a minha mulher me disse que o toco de vela serve para passar no ferro de engomar a fim de deslizar melhor na roupa. Bem, as minhas inutilidades são úteis a alguém. Definitivamente compreendi Lacan: “Só sei o que digo, nunca o que escutam”.
A DUPLA FACE DO ROMANTISMO
As mulheres amam diamantes, mas os homens teimam em mandar flores.
A ARTE DE ATINGIR A UNANIMIDADE
Ao publicar o epigrama acima, uma leitora me enviou a seguinte mensagem: “Achei essa frase muito machista, pois considerou que a mulher é sempre interesseira”. Um sujeito me retrucou: “Sua frase é infeliz por indicar que o homem é um ser avarento”. Parece que, finalmente, atingi a unanimidade. Não posso e não tenho a quem me queixar, meu caro Nelson Rodrigues.
PRINCÍPIO DA PLENITUDE HERMÉTICA DO DIREITO
Sabe o que mais admiro nos juristas? Eles têm respostas pra tudo: e mesmo quando ignoram o indagado, invocam os princípios gerais do Direito. Ah, quem me dera usá-los na angústia da poesia diante do poliedro colorido, do arco-íris e de outras belezas multifacetadas.
RECLAMAÇÃO DO ATRAVESSADOR
A poesia é um brinquedo complicado de montar e não tem o manual de instrução: nem posso invocar o Código de Defesa do Consumidor: não sou o destinatário final.
GENUÍNO
Quando criança, tinha medo do Mickey: não sabia onde ele morava. Mas não temia o Saci-pererê: ele havia de viver no quintal de casa.
ONTOLOGIA DO CASAMENTO
Os juristas não sabem dizer da natureza do casamento. Dizem que se trata de algo sui generis. Mas isso todo casal já sabia.
COCHILO
Comecei a pensar no poema, voltei a dormir e sonhei (…) pois é: perdi o soneto no sonho.
AOS PRETENDENTES
Nem tudo é de todo inútil: talvez meus netos digam aos pretendentes:
— Sabia que meu avô era poeta?
PROTOCOLAR
Era tão protocolar que morreu há poucos dias de concluir o manual dos amantes.
GUARDA-CHUVA
Os bons versos são como guarda-chuva: nos amparam a qualquer tempo.
SUGESTIONISMO
Dona Domingas dizia entonce: ficava rindo com os outros meninos porque D. Domingas não sabia pronunciar então: deixa que D. Domingas falava espanhol sem saber.
PARA NÃO SE LER EM DIA DEPRESSIVO
Nada escapa à morte: nem mesmo este desprezível epigrama.
COMPANHIA
Saudade, a solidão em busca de companhia.
DIÁRIO
No diário o autor revela os outros falando de si mesmo.