Não, a vida não é movimento uniforme:
seda, brisa, delicadezas, cristal e beleza –
A vida é. E talvez agora tenha dito tudo:
total imperativo em estado de natureza.
A vida é coice, desconcerto, desencanto –
artimanhas do acaso, desmantelo da lógica,
um facho descontrolado em busca do ser
vazado de dúvidas e perguntas em aberto,
o humano lançado objeto no vasto mundo;
humano, exato animal social entre animais
a construir reinos e a destruir outros tantos
a devastar, a conjugar nossas misérias todas,
expor o âmago da nossa natureza fratricida.
Desamparo. Visceral desamparo, o mundo
(o mundo é áspero, intratável, rebelde, frio).
Inventamos deuses e os artefatos de guerra
para subjugar o outro apenas por ser outro
(inventamos a escravidão, o apartheid, ritos
a impor ao outro o domínio pleno e eterno).
E ainda limitamos a potencialidade da mulher,
carne de igual carne, sangue do mesmo sangue,
ser conjugado das mesmas angústias e sonhos
(difícil não se envergonhar diante do espelho).
Já havia a moral, a ética, os códigos, a religião,
a sofisticada filosofia grega, toda renascença –
sejamos honestos, a grande poesia estava posta:
Homero, Virgílio, Dante, Camões, Shakespeare.
Também a prosa já completamente estabelecida
(Cervantes, Tolstói, Dostoiévski, Virginia Woolf).
As artes plásticas tinham seus alicerces erguidos
(Leonardo da Vinci, Michelangelo, Frida Kahlo).
À disposição do inconsciente estava dr. Freud –
e, ironicamente, existia o conceito de civilidade,
quando a sombra trouxe Hitler e o holocausto.
Depois de Hitler fomos reformar as constituições
e as enxertamos de princípios para limitar o poder:
o direito internacional finalmente iria deter o mal –
não demorou, eis o fracasso: bipartimos o mundo
E não apenas o mundo, nós bipartimos o humano
(os direitos individuais e os sociais se apartaram –
assim, de natureza apartada, vivemos por 44 anos.
E agora a guerra é pulverizada, delegada, cirúrgica,
mas nada disso ameniza nossa atávica brutalidade
(Oriente Médio, Ucrania, Rússia, Sudão, Haiti).
Mas poetas, loucos, crianças, lunático se irmanam
no propósito de urdir pelo avesso do improvável,
pronunciam a resiliência e atiçam luz à escuridão:
buscam sonhar sobre a muralha miserável da vida.
Professam na vida o desejo banal ou até alucinado,
talvez tolo de, desesperadamente, encontrar o azul.
Nesse desejo me apego tal criança à bolha de sabão.