Se escrevesse ou não, isso seria indiferente à literatura. Tinha essa consciência. Nada mudará na história, pensou. Talvez nunca seja publicado em edição nacional. E se o for, é provável que ninguém o leia. E se for lido, nada significará ao leitor, concluiu.
─ Mas se não escrevo, não serei eu mesmo. Escrevo para existir diante do espelho – disse baixinho, quando terminava o último verso do poema: e o azul transbordando sobre as nuvens.
Ouviu um barulho na porta. Era Beatriz com as compras, a fatura do cartão de crédito, a conta de energia elétrica e um livro debaixo do braço.
Weliton se fixou no livro de uma belíssima capa. E antes que ele indagasse sobre o exemplar, Beatriz o jogou ou o soltou em cima da mesa.
─ O Belizário Carneiro publicou um livro de contos. A Carminha disse que foi um sucesso o lançamento. Um acontecimento! Todo mundo da repartição compareceu. Sabe quantos exemplares eles venderam na noite de autógrafo? 107. Isso mesmo: 107. Disse a Carminha que o livro vai se pagar e ainda vai sobrar um dinheirinho. É o que eu digo: você deveria escrever prosa: contos, novelas, romances hiper-realistas, já que você não tem talento para livros de autoajuda. Isso sim, vende como água. Ou escreva um livro sobre a luxúria. Uma amiga minha, a Carminha, está lendo 50 tons de cinzas. Isso sim, movimenta o mundo: a busca pelo sucesso e a libido. O resto são adereços inventados pelos intelectuais.
Weliton, por trás da estante, onde colocou uma escrivaninha e deu o nome de escritório, limitou-se a aumentar o som para ouvir melhor as bachianas brasileiras nº 5 e abafar a fala que vinha da cozinha. Definitivamente não queria mais reabrir aquela discussão sem fim. Tinha consigo esse princípio: a verdadeira literatura é o refúgio do belo. Arte é a vingança do homem sobre a morte: é a única coisa que o tempo respeita. E não falava apenas de arte materializada, mas substrato da vida. E lhe vinham à mente esses versos de Miguel Torga sobre a beleza: “És a graça da vida em toda a parte/Ou a arte,/Ou em simples verdade”. O próprio modo de se viver pode ou não ser artístico. Há pessoas que se tornam inesquecíveis por um simples sorriso. De fato, alguns sorrisos clareiam o mundo por inteiro.
Estava ainda nestes pensamentos, enquanto a voz de Beatriz continuava na cozinha arrumando as compras. Beatriz – como próprio das mulheres – gostava de repetir as coisas. Talvez por isso, Weliton tenha escrito um aforismo: Se tua mulher não te recomendar a mesma coisa ao menos por três vezes, fica atento: ela pode estar sofrendo de amnésia.
Continuo em silêncio. Estava resolvido não dizer palavra. Era uma discussão requentada. Ela já sabia tudo o que ele pensava sobre o tema. Não, não ia mais discutir. Beatriz jamais admitiu que a poesia é um destino. Maldito, talvez. Mas um destino. E um destino grandioso. Não, não e não. Se recusava a continuar publicando para ser lido apenas pela condolência dos amigos, dos colegas de repartição. Se o Belizário estava satisfeito com isso, ótimo. E se não conseguisse publicar poesia, não ia se meter com a prosa, apenas por questão comercial. Aquela conversa ,verdadeiramente, o aborrecia. Era um poeta e ponto. Ou uma editora respeitável o publicaria ou nada feito. Tinha até vontade de tentar os contos: a mãe e o pai eram grandes contadores de histórias: algumas hilárias, outras de humor negro, podia até aproveitar muita coisa. Mas sempre que tentava um conto, lá vinham os versos… em danação! E poesia ninguém ler. E há dois motivos básicos para tanto: primeiro, todos pensam que qualquer um é poeta; segundo, os poetas adoram ser herméticos. Por isso gostava tanto do Bandeira: Só não fui claro quando não pude.
Já escrevia por vício: para se livrar da emoção, no sábio sentir de Eliot. Ou conseguiria uma grande editora ou nada feito: continuaria escrevendo para a gaveta até a fonte secar, até não sentir mais aquele desespero de vida ou morte de que falava Rilke. De que adianta ser publicado na província, ter foto estampada no segundo caderno do único jornal da cidade? Grande coisa uma resenha de um amigo, que nem entende direito o que ele escreve. E daí? Melhor continuar escrevendo para a gaveta. Já tinha superado essa vaidade mesquinha de ser “autor publicado”.
Enquanto pensava nisso tudo, Weliton deletou o verso e o azul transbordava sobre as nuvens e desistiu do poema. Ficou com as Bachianas. Villa-Lobos o consolava: o maestro sabia que o tempo só respeita a essência da arte. Deixou-se absorver pela música e deu um muxoxo ao se lembrar daquelas malditas provas da universidade à espera de correção havia uma semana. Fechou os olhos e entregou-se à poesia da música.
Mas Beatriz já o conhecia bem. Eram dez anos de casados. Sabia que quando a queria desprezar ia ouvir música clássica. E nada mais irritava Beatriz do que ser ignorada pelo silêncio. Aquela tática de guerrilha era insuportável. Por isso deixou as coisas na cozinha e voltou ao escritório.
─ Você é um lírico tardio. As pessoas têm sede de sangue, de catástrofe e precisam por isso serem consoladas. Você não vê? A televisão tem intermináveis programas sobre violência. E sabe por quê? Por que tem audiência. Isso vende. As pessoas precisam se conformar na dor alheia. A desgraça alheia consola. Isso nos conforta. Ou você pensa que todo mundo pode ir ao psicanalista como você?
─ Beatriz, compreenda: a poesia é um destino – disse tentando encerrar a discussão, apesar de saber que aquela frase já havia sido pronunciada tantas vezes e nas mesmas circunstâncias.
Antes de continuar, olhou profundamente nos olhos de Beatriz, porque era um poeta contido, que a amava transbordando, para finalmente dizer num tom conciliador tendo por aliado a grossa luz que esmerilava o amarelo de fim de tarde: ─ A poesia é sempre esse desejo da vida tornar-se sonho.
─ E não é você mesmo que fala em prosa poética? E então, por que não tenta uns contos? Até prosa municipal vende mais que poesia – ironizou Beatriz com um resto de sorriso nos lábios.
Verdade seja dita: Beatriz sabia cultivar a sutileza mordaz. Ela sabe tecer a arte do recheio entre as palavras. Às vezes a provocava apenas para se divertir com essa capacidade machadiana da parceira. E não há de se esconder: aquilo o excitava. Ela ficava mais sexy ainda: gostava de ver aquela boca vermelha exercitando a arte do debate. Delicioso aquele duelo: a boca sensual-mordaz e os olhos de arco-íris ofertando ternura.
O silêncio se abateu sobre ele. Weliton não tinha mais argumento: estava vencido. Beatriz sabia encerrar uma discussão e mesmo sem ter razão, sempre triunfava. Aí ele pensava do que lhe havia adiantado ter lido Schopenhauer, no seu A arte de ter razão (ou como vencer um debate sem precisar ter razão). Talvez devesse voltar a ler outro título de Schopenhauer, A arte de conhecer a si mesmo. Podia ser uma ótima ideia presentear Beatriz com um exemplar. Riu tal um menino traquino ao ter um pensamento engenhoso. “Conhecer a si mesmo” eis o mistério dos mistérios antes da morte. Fechou os olhos e raciocionou: ─ Desde Socrátes esse tema ocupa os mortais, Schopenhauer, os existencialistas. Camus. Belíssimo romance, o estrangeiro: a delicadeza da solidão, a poesia da angústia.
Ficou melancólico por um instante.
E por que não tentar um conto sobre aquela situação? E por que não? Lançou-se ao desafio: ─ Mostrarei a Beatriz que sou capaz – falou quase num muxoxo. Demorou a adormecer, ficou com aquilo na cabeça. Tentou sonhar com algo que lhe revelasse um conto. Relembrou as histórias contadas pelos pais durante a infância. Acordou cedíssimo. Era domingo: toda a casa dormia. Mal escovou os dentes e ainda comendo uma maça, sentou-se ao computador.
Weliton destacou em negrito o título do conto Poeta, olhou pela janela, e escreveu “o sol despontava por detrás da montanha e o azul transbordando sobre as nuvens”. Depois parou. Sorveu vagarosamente o resto do suco de maracujá e sorriu para si mesmo pensando em Valery, porque Deus sempre nos dá o primeiro verso e a mesma missão: viver com poesia ou sem ela. A decisão será sempre de cada um, ponderou num olhar em mansidão de quem havia encontrado a paz: um homem bastante em si. Weliton ligou o aparelho de som para ouvir a bacchiana nº 5, deitou-se no sofá de olhos fechados, e já não sabia se algum dia escreveria um conto, mas tinha certeza de ter em mãos um enredo para a vida.
Um beija-flor veio à janela beber e mostrar que a beleza é leve. Weliton estancou as mãos sobre o teclado, deixou-se ficar admirando o beija-flor: o tempo também estava suspenso no ar naquela manhã de silêncio e contemplação. Ao ver o beija-flor parado no ar, o escritor se lembrou do último dvd de balé que havia adquirido: Gisele. É que aquela leveza – num relâmpago onírico – remeteu seus pensamentos à performance da bailarina Ana Botafogo. Gisele era seu cavalo de batalha (gravação não era das melhores, mas não comprometia a poesia da bailarina: mais leve que o beija-flor que ali estava parado no ar). Assim, de súbito, vieram-lhe estes versos:
Ana Botafogo,
o beija-flor
te imita tanto.
(…)
E não se pode negar:
tem ele tua leveza.
E foi aí que ficou ruminando: por que escreve poesia? Que mistério é esse? Conclui que era inevitável. De súbito tal um relâmpago em céu de brigadeiro sem qualquer prenúncio lhe vinha algo que lhe mostrava no mundo uma beleza explícita, mas ainda virgem de um olhar.
De repente pensou no Lúcio, seu amigo de infância e fumante inveterado. Era mais de uma hora da manhã quando o Lúcio lhe telefonou. Levou um susto, porque seu tio João Luis – que sabia contar uma história com leveza e suspense – estava internado, já desenganado dos médicos. E a qualquer hora a indesejável das gentes chegaria. Felizmente era o Lúcio – em mais uma de suas crises de abstinência – do outro lado da linha:
─ Só você me entende, meu amigo. Você também é viciado: em verso.
Lúcio havia guardado uma frase do poeta, num jantar na casa dele. Beatriz havia comentado: ─ Weliton vive enfurnado nos livros.
Naquela oportunidade, Weliton fez um ar de riso antes de falar:
─ Confesso gosto de ler e tenho um ritual: antes de qualquer coisa, leio um poema ao acordar. Talvez seja minha prece, já que sou agnóstico. É, pode-se dizer: sou viciado em verso.
Lúcio parou de fumar e dois anos depois morria vítima de um câncer nos pulmões. Na última vez que Weliton foi ao hospital, Lúcio, mordaz como sempre, disse que a vida era o nada com o qual queremos fazer tudo, e arrematou:
─ Perdi dois anos de vida – referia-se ao fato de há dois anos ter deixado o cigarro.
Weliton tinha os olhos molhados, quando despertou das lembranças do amigo. Deteve-se no azul do céu sem nenhuma nuvem.
Tinha razão o Lúcio, a vida é o nada que inquieta a poesia. Toda poesia é sobre o nada, porque poesia é invenção. Não há arte sem poesia, nem poesia sem arte, sem vida ao redor pulsando e tudo o mais são rótulos. E voltou a ler a última frase do conto: e azul transbordando sobre as nuvens sem saber como prosseguir, porque naquele momento o nada e o azul infinito era tudo do que dispunha.