Fumus Boni Iuris

Como sabem os versados nos mistérios forenses, há situações factuais em que se faz necessário que uma providência seja tomada pelo juiz em caráter de urgência sob pena de enorme prejuízo para quem bate às portas do Poder Judiciário.

Para que tal ocorra se impõem a presença de dois pressupostos: o fumus boni iuris e o periculum in mora. Tais expressões poderiam ser traduzidas por: a fumaça do bom direito e o perigo pela demora.

A fumaça do bom direito significa que o postulante demonstrou preliminarmente que a ordem jurídica ampara a sua pretensão. E o perigo pela demora, significa, por óbvio, que se aquele direito não for assegurado naquele exato momento, pode se perder de modo irremediável. De posse do fumus boni iuris e do periculum in mora, o juiz pode deferir a chamada liminar. Ou seja, liminarmente, de logo, o juiz assegura a pretensão ao postulante.

Pois bem […]

Tudo isso foi explicado pelo Dr. Francisco Manso de Oliveira Sossegado ao seu cliente João Ácido da Garrucha Trouxada, um homem rude cuja impaciência era denunciada no próprio nome e que tentava pela insistência vencer sua deficiência intelectual.

No primeiro dia, após ter o Dr. Francisco Manso ter dado entrada na petição do mandado de segurança, João Ácido da Garrucha Trouxada lhe telefonou por quatro vezes: a última por volta da meia-noite. Nem mesma a infinita paciência do Dr. Francisco Manso foi capaz de suportar tamanho assédio. Mas, ainda assim, manteve a polidez que o seu ofício exigia e falou pacientemente.

─ Seu João Ácido, como já lhe disse: tudo que podia, fiz. Dei entrada no mandado de segurança ontem mesmo na primeira hora. E falei pessoalmente com o juiz explicando a urgência do seu caso.

─ E o que ele disse da minha aliminar?

─ Ele disse que ia apreciar o quanto antes seu pedido de liminar. Mas são muitos. É preciso um pouco de paciência.

─ E o senhor vai falar com ele amanhã.

Dr. Francisco Manso prevendo que no dia seguinte o assédio seria ainda maior e lembrando de que tinha compromissos importantíssimos nas próximas horas, usou sua sagacidade de advogado para se desviar daquele cliente insistente.

─ Seu João Ácido, façamos o seguinte: amanhã bem cedo o senhor monta praça na Secretaria Judicial. Fale com o Dr. Aleluia Boa Hora, secretário Judicial, e fique lá até a decisão sair.

Felizmente a estratégia parece ter convencido João Ácido, que se limitou a dizer que faria isso e desligou o telefone para sossego do Dr. Francisco Manso.

No dia seguinte, antes do fórum abrir, lá estava João Ácido da Garrucha Trouxada. Antes do Dr. Aleluia Boa Hora ter chegado – que tinha por hábito ser pontual em honra do seu nome – o impetrante tomou assento na sala de espera. E a todos que passavam abordava na esperança de estar se dirigindo ao Dr. Aleluia Boa Hora.

Pontualmente, às 08h30, o Dr. Aleluia adentrou a sala de espera, sendo abordado de chofre por João Ácido:

─ Doutor Aleluia, desculpe a má hora, mas vim saber da minha aliminar.

Doutor Aleluia de cara amarrada, de quem não tinha dormido bem, foi seco:

─ Sente-se: espere um minuto, já lhe atendo.

João Ácido da Garrucha Trouxada de tão arreliado não conseguiu sentar: ficou andando de um lado pra outro, reclamando em muxoxos da Justiça, do advogado, do juiz, do porteiro que abriu o fórum com dois minutos de atraso.

Dr. Aleluia Boa Hora sofria de enxaqueca e estava naqueles dias. Já havia tomado sua aspirina sem sentir qualquer melhora. Entrou em sua sala, colocou um Cd de Mozart, fechou os olhos por alguns instantes e tentou relaxar. Quando assim estava, o interfone tocou. Era Angústias Árias, a Técnico Judiciária com vinte anos de experiência em atendimento ao público:

─ Doutor Aleluia, o Sr. João Trouxada está perguntando se o senhor já viu o processo dele.

Por pouco Dr. Aleluia não soltou um palavrão. De olhos ainda fechados e salvo pela música de Mozart, pediu que a serventuária tomasse nota dos dados do processo e assim que Sua Excelência chegasse ia ter com ele e pediu para não passar nenhuma ligação, salvo se fosse chamado do juiz.

Sua Excelência, Dr. Braúna Ferro Durão, adentrou ao fórum pela entrada privativa e se instalou no gabinete cheio de cólera: durante o café da manhã soube que seu filho tinha batido o carro de seus sonhos, comprado dois dias antes. Interfonou para Angústias Árias e, sem sequer desejar bom dia, disse numa voz ríspida:

─ Diga ao Aleluia que venha ao gabinete.

─ Sim, Excelência.

Ao ouvir esse diálogo, João Ácido se debruçou no balcão antes de se dirigir à serventuária:

─ Era o juiz? Pergunte a ele sobre a aliminar do cliente do Dr. Francisco Manso. O Doutor Francisco Manso já falou com ele.

Angústias Árias disse que já estava com os dados do processo em mãos e ia falar com o Dr. Aleluia para despachar com o juiz.

─ Despachar com o juiz? – indagou curioso João Ácido.

─ Despachar com o juiz quer dizer falar com o juiz.

Depois da explicação, Angústias Árias apertou uns processos contra o dorso e saiu para encontrar o Doutor Aleluia de olhos ainda fechados, numa sala em penumbra, tomada pela música suave de Mozart.

─ Doutor Aleluia – falou Angústias Árias – com a voz mais suave de todo o fórum.

O doutor Aleluia abriu os olhos devagar.

─ Oi, Árias. Desculpe (…) essa minha enxaqueca!

─ E o hoje o dia promete: aquele senhor, só Jesus na causa. Aqui estão os dados do processo dele. Em verdade, o processo já está conclusos para apreciação da liminar desde ontem: aqui estão os dados.

Antes de oferecer as belas ancas balzaquianas aos olhos do abatido doutor Aleluia, Angústias Árias lembrou: ─ O doutor Braúna está lhe esperando.

Ao entrar no gabinete do magistrado, doutor Aleluia soube, de logo, que o chefe não ia bem. Eram dez anos de convivência. E a intimidade entre ambos permitia a pergunta:

─ O que houve, doutor? Sinto que o senhor não está bem.

─ Sabe meu carro novo? Pois é: meu filho bateu feio com ele.

Aleluia que sabia o quanto aquele era um sonho de consumo do chefe, tentou amenizar: ─ Mas o importante é que não houve nada com o Ausêncio.

─ E você com esses olhos pisados, já sei: a maldita enxaqueca.

─ E o dia vai ser daqueles. E nem posso sair mais cedo: o pessoal do CNJ chega hoje e o Bronzibel está acompanhando a mãe que sofreu um infarto.

De fato, o Bronzibel Glória do Brasil era o Secretário substituto e sem ele, Aleluia tinha que suportar a dor de cabeça durante todo o dia.

─ Nesse caso, como o pessoal do CNJ só chega depois do almoço, depois que despacharmos o que há de mais urgente, vá pra casa e tente dormir um pouco. Preciso de você inteiro durante a tarde.

─ Em sendo assim, doutor, aprecie logo esse caso de um cliente do Doutor Francisco Manso. O homem é tão antipático que reclamou até do vigilante do fórum. E enquanto o senhor não apreciar a “aliminar dele” não vai arredar o pé.

Com o dedo indicador esquerdo passando pelo lábio inferior, Doutor Braúna quis saber se o Secretário havia lido a petição inicial.

─ Não, senhor. Confesso que nem li ainda.

Com um gesto, o Doutor Braúna pediu os autos, no exato momento que o telefone tocou. Era da seguradora e as notícias não eram boas: o seguro se recusava a pagar o prejuízo sob a alegação de que seu filho Ausêncio dirigia o veículo com a habilitação vencida.

─ Aquele irresponsável! – foi o que disse Sua Excelência, antes de passar os olhos pela petição inicial e constatar cheio de cólera que não havia o requisito do fumus boni iuris.

Abrindo sua caixinha de remédio e colocando um comprimido debaixo da língua, pediu à Aleluia que chamasse Antonio das Dores e Louvores, seu assessor.

─ Indefira essa liminar pela falta do fumus boni iuris.

─ Posso usar o modelo padrão, Excelência?

─ Não: use o novo. Fiz agora um ainda mais sucinto. Não se tem mais tempo para digressões. O volume de trabalho é infernal. A síntese está na ordem do dia. Temos que decidir como o Dalton Trevisan escreve seus contos: objetividade máxima.

─ Sim, senhor – disse Antônio das Dores e Louvores se despedindo.

Enquanto isso na antessala, João Ácido suava em bicas apesar da central de ar forçar Angústias Árias a não dispensar o blaizer. Foram cinquenta minutos de mal-estar que coloram os vinte anos de Angústias Árias à prova. A cada dez minutos, João Ácido vinha ao balcão: ─ E eu que pensava que a aliminar era coisa rápida.

Angústias Árias deu graças a Deus, quando viu o doutor Aleluia voltar à sala se dirigindo ao balcão.

─ Aqui está a decisão, senhor. Pode ler e depois entregue o processo para Árias – e confirmando a determinação com um olhar para a serventuária, o doutor Aleluia ganhou a porta com a cabeça por explodir.

A decisão era de fato sucinta: em duas páginas havia sido julgado improcedente o pedido de liminar. E para tentar despachar o mais rápido possível João Ácido, o doutor Aleluia entregou a decisão na última página que era inaugurada com a seguinte frase: “Tome-se, pois, ao impetrante o fumus boni iuris”.

Ao ler essa frase, João Ácido da Garrucha Trouxada se desesperou e no limite da angústia conseguiu na terceira tentativa digitar corretamente o número do celular do doutor Francisco Manso.

Em estando o telefone do causídico em viva voz, todos na sala de audiência ouviram o veredicto transmitido por João Ácido da Garrucha Trouxada:

─ Doutor, deu tudo errado: tomamos fumus no boni iuris.

O advogado constrangido, aceitou o copo d’água que a moça do cafezinho lhe oferecia assustada com o que acabara de ouvir.