INTERROGATÓRIO DO RÉU À LUZ DA CONSTITUIÇÃO

INTERROGATÓRIO DO RÉU À LUZ DA CONSTITUIÇÃO

SUMÁRIO

 

1 – Natureza jurídica do interrogatório;

2 – Os princípios constitucionais do processo penal;

3 – Interrogatório: expressão do contraditório;

4 – Interrogatório: concretização dos direitos do homem;

5 – Conclusão;

6 – Referências.

 

1 – NATUREZA JURÍDICA DO INTERROGATÓRIO

 

Um dos problemas mais intrincados da ciência jurídica é, sem dúvida, declinar a natureza de qualquer dos seus institutos. Com o interrogatório do réu não é diferente. E nos parece que a razão de tal dificuldade reside na formação histórica do processo penal.

Os doutores declinaram ser o inquisitório, o acusatório e o misto os três sistemas processuais que a história conhece.

No sistema inquisitório, o processo penal era temerário, visto que o próprio juiz podia iniciá-lo ex officio. Mas não apenas iniciava o processo, igualmente tinha o magistrado os poderes de acusar, defender e julgar. Não havia a possibilidade dialética para a formação da sentença. Tal modelo inquisitório recebeu o beneplácito da Igreja Católica durante a alta Idade Média, servindo aos propósitos da Santa Inquisição.

Por seu turno, o processo penal acusatório significou a antítese do sistema inquisitório, visto que contemplou o princípio do contraditório, bem como estabeleceu a igualdade de tratamento entre os sujeitos da relação processual. Ademais, o sistema acusatório declinou pelo princípio da publicidade dos atos processuais, retirando do magistrado os poderes incompatíveis com as garantias da liberdade do acusado.

Finalmente, o processo penal conheceu o sistema misto, que pela sua própria semântica denuncia o ecletismo dos sistemas inquisitório e acusatório. Conforme esclarece o professor Fernando da Costa Tourinho Filho o sistema misto é composto de três fases, dentre as quais, duas delas (investigação preliminar e instrução preparatória) têm o colorido nitidamente inquisitorial, ao passo que a última fase (julgamento) possui afinidade com o sistema acusatório. Observe-se que no sistema misto a feição inquisitorial ocorre na fase processual propriamente dita.

Diante de tal visão panorâmica, podemos concluir que o sistema pátrio vigente é o acusatório, visto que, uma vez iniciada a relação processual, todos os atos são conduzidos pela dialética até a decisão com trânsito em julgado.

Com essas informações preliminares, parece-nos oportuno indagar qual a natureza jurídica do interrogatório. Evidente que para respondermos a essa indagação uma anterior se impõe. Exatamente a de saber quando se inicia o processo penal à luz do ordenamento jurídico positivo. Essa pergunta é essencial, pois a partir desse marco temporal todos os atos processuais devem reclamar o método dialético.

 

A teoria que melhor explica a formação da relação processual é, sem dúvida, aquela encabeçada por Hellwing, a qual é denominada angular. Essa teoria, em suma, declina que os direitos e deveres dos sujeitos do processo se voltam para o Estado-juiz. Ratificando tal teoria escreveu Tourinho Filho: “Hoje, o entendimento dominante é de que a ação é um Direito contra o Estado”.

Sendo, pois, a relação processual angular, em primeiro há o liame entre o autor e o juiz para, posteriormente, ocorrer o vínculo entre o juiz e o réu. Neste instante, portanto, se verifica a formação do processo, enquanto instrumento formal de solução dos conflitos.

Assim sendo, a citação válida angulariza a relação processual. José Frederico Marques explicitou este entendimento: “Iniciada e constituída com a citação válida, a instância do processo penal (…)”

Evidente que se a citação válida forma a relação processual e sabendo-se que o sistema processual pátrio é o acusatório, deduz-se que todos os atos posteriores à citação obedecem aos princípios inerentes ao sistema eleito pelo constituinte e recepcionado pela nova ordem constitucional. Podemos afirmar, a partir desse instante, que o interrogatório deve ser ato ungido pelo princípio do contraditório, vez que esse tem natureza jurídica probatória.

O interrogatório é tecnicamente prova. Em primeiro por se encontrar no Título VII do Código de Processo Penal, exatamente aquele intitulado DA PROVA. Em segundo, pelo simples motivo de estar nesse ato a possibilidade de confissão do acusado. E a confissão, como sabemos, é prova, conforme a dicção do art. 197 do mesmo diploma processual penal. Em terceiro, porque no binômio acusado-vítima repousa o centro gravitacional em torno do qual gira o princípio da verdade real.

Não se deve olvidar que o silêncio do acusado durante o interrogatório não pode ser interpretado em prejuízo de sua defesa (ao contrário do que prescreve o art. 186 do CPP), mas poderá constituir elemento para a formação do convencimento do juiz, consoante declina a inteligência do art. 198 do mesmo Código de Processo Penal. Mesmo porque o método hermenêutico mais autorizado nos dias que correm é o sistêmico, no qual a análise é realizada a partir do conjunto de todos os elementos disponíveis e não os tomando isoladamente. Ademais, deve-se lembrar com Carlos Maximiliano que tudo se interpreta, inclusive o silêncio.

Apesar da clarividência da natureza probatória do interrogatório, a literatura jurídica ainda é vacilante. Há uma passagem de Tourinho Filho que é sintomática a propósito da problemática:

 

Sempre pensamos, em face da sua posição topográfica, fosse o interrogatório, também, meio de prova. E como tal, era e é considerado. Meditando sobre o assunto -principalmente agora que a Constituição, no art. 5o, LXIII, reconheceu o direito ao silêncio chegamos à conclusão de ser ele, apenas, um meio de defesa.

 

Data vênia não podemos concordar com o pensamento do ilustre professor. Não é privilégio do interrogatório ser meio de defesa. Com o princípio da ampla defesa constitucionalmente assegurado (art. 5o), qualquer meio de prova lícito pode ser usado em defesa do réu. A própria prova testemunhai requerida pelo réu é meio de defesa. Assim, o interrogatório é prova produzida pelo acusado, de modo personalíssimo e, por consequência lógica, meio de defesa. Ademais, o interrogatório será apreciado no bojo do conjunto probatório que busca encontrar a verdade real, não podendo o juiz deixar de aproveitá-lo naquilo que for contrário ao réu. Logo, não é mero meio de defesa, mas prova produzida pessoalmente pelo acusado.

Não temos receio em afirmar que o contato do réu com o juiz nos moldes permitidos pelo direito pátrio são resquícios do sistema inquisitório, incompatível com o modelo acusatório declarado pelo Poder Constituinte, quando do art. 5o, conforme passamos a demonstrar.

Clique aqui para ler todo o artigo