OUVINDO VOZES

Ouço vozes nos lugares mais insólitos
(penso que é um anjo a andar comigo).

Por certo um desses anjos galhofeiros,
pois às vezes um tanto inconveniente:
não é dado a respeitar as convenções
(fala nos concertos, no meio da noite,
durante as aulas, no cinema, no bar).

Seria apenas um? Não tenho certeza.
Por vezes parece um coral agitado –
são vozes dissonantes, tagarelam.
(passo muitos dias sem ouvir nada,
suponho que nunca mais ouvirei –
eis que, de repente, a mesma voz).

Primeiro lembrei de Freud e sua teoria:
os artistas estão próximos da neurose –
são seres reprimidos e tensionados
(o diagnóstico não é tão assustador).

Ademais o que ouço me parece lúcido,
verdadeiro, comovente, belo, cintilante.

Pensei em Nietzsche e temi a loucura.
(essas vozes me chamam à lucidez –
ou dela me apartam alegando arte?).

Ao invocar Nietzsche, essa sentença:
a lucidez ao extremo beija a loucura.
(a metafísica de Platão lhe foi inócua:
seu abismo foi a alegoria da caverna).

A clarividência sobre o mundo ao redor,
a ignorância e o desperdício da beleza –
soco no estômago de filósofos e poetas.

Nise da Silveira poetizando o velho Freud:
Os artistas e os loucos mergulham
nas mesmas águas,
mas os artistas voltam.

Voltam, Nise, mas não completamente:
habita nos artistas um anjo azul em delírio.