Epigramas e Minicrônicas – Parte 3

RAIMUNDINHO, O INCONVENIENTE

Raimundinho é aquele cara que fala, naturalmente, as coisas mais impróprias. Talvez Freud dissesse que se trata de um sujeito sem superego. Por isso nós, seus conhecidos (conhecidos, porque impossível ser amigo do Raimundinho: nunca se soube de qualquer amigo dele em suas sucessivas reencarnações), o batizamos com um aposto: o inconveniente. Enfim, Raimundinho é aquele camarada que vocês, leitores, não conhecem, mas todo mundo sabe quem é.

O ENCONTRO

Quando Raimundinho, o inconveniente, se casou, Ironilde foi sintética: — Nada se perde, tudo encontra seu igual.

EM CASA

Raimundinho, o inconveniente, hospedado na casa de um amigo recente, pegou um pacote de bolacha em cima da geladeira, sentou na cadeira preferida do patriarca colocando os pés na mesinha de centro e quando o idoso voltou à sala sem saber onde se acomodar, Raimundinho arrematou a cena estendendo o pacote de bolacha em direção ao velho, indagando: — Quer um biscoitinho?

CÚMULO

Raimundinho, o inconveniente, pega a única fatia do pudim destinada ao guri e depois palita os dentes.

O NOIVADO

Uma festa linda! O discurso do noivo foi poético, verdadeiro, comovente. A noiva recitou Amor é fogo que arde sem se ver, o famoso soneto de Camões. Foi aí que Raimundinho, o inconveniente, deu uma leve cotovelada no braço da mãe da noiva, uma verdadeira lady, e disse com a boca cheia de petiscos: — O noivo pediu a mão da noiva querendo outra coisa: foi ou não foi? Nesse momento deu uma gargalhada tão estrondosa que ninguém mais conseguiu ouvir os violinos que executavam o trecho da Ode à alegria da Nona Sinfonia de Beethoven.

RAIMUNDINHO E O SUFISTA

Ontem – dia de novo recorde de mortes causadas pelo coronavírus – Clarisse postou, no grupo do whatssap, um texto elegíaco de delicadeza poética sobre essa pandemia que já destroçou tantas vidas e famílias. Confesso: fui às lágrimas. O primeiro a comentar o texto foi o Raimundinho com a inconveniência costumeira: — Clarisse, mas não tá ruim pra todo mundo: o sufista tá adorando, porque já vem aí a terceira onda…kkkk. Despiciendo dizer que Clarisse saiu do grupo e bloqueou o Raimundinho, já que, segundo ela, não se pode bloquear o Brasil.

RAIMUNDINHO E A ARTE

Raimundinho encontrou uma velha conhecida no aeroporto de Brasília. — Para onde você está indo? E a conhecida eufórica quase sem caber em si de tanto contentamento: — Ah, vou levar a Bia que vai começar o curso de dança no The Royal Ballet School. E Raimundinho na sua insensibilidade estética: — É cada curso hoje em dia!

MENSAGEM DE WHATSSAP

Raimundinho, o inconveniente, assim respondeu ao amigo de whatssap: — Desculpe pela demora: vi a mensagem, mas chegaram outras bobagens e terminei me esquecendo da sua.

DO GIRASSOL A ONZE E MEIA

Raimundinho, o inconveniente, sempre se dedicou à jardinagem e se tornou um técnico no assunto, pois sempre lhe faltará a sensibilidade exigida aos apreciadores de qualquer arte: adorava cultivar os girassóis e as onze e meia (…) fato é que sua mulher gosta receber as amigas a petit comité nos jardins da casa. Nestas ocasiões ele fica a distância observando, mas vez ou outra se aproxima e, não raro, diz impropriedades. Era verão e Fátima, muito acima do peso, ali estava com um lindo vestido floral. Por óbvio chamou a atenção de Raimundinho que, de longe, se manteve intrigado: que flor amarela seria aquela no vestido de Fátima? E veio se aproximando e colocando os óculos já mirando o dorso da convidada: — É mesmo um girassol, mas em você pareceu a onze e meia.

HETERÔNIMO

Fernando Pessoa, por sua genialidade, precisou lançar mão de três heterônimos: a mim basta Raimundinho, o inconveniente.

LEGIÃO
a João Braga

O governante era apoiado por um jornal e odiado por outro. Após um ato público bastante concorrido com a presença do governante, eis as respectivas manchetes:
— Somos legião!
— Teu nome é legião!

DESERTOR

O livro que ensina sobre armas é um desertor.

O MISTERIOSO BEM DAS DITADURAS

Todas as ditaduras são feitas em nome do Bem. Mas o Bem encarregado pelas ditaduras é bem esquisito: nunca está de bem com a vida e tudo que a oposição faz não é coisa do Bem. E o mais curioso: quando as ditaduras acabam a gente se sente tão bem.

ARTEFATOS DE COISAS APARENTEMENTE INOFENSIVAS

O número na sua aparente fleuma quando lançado em uma urna pode produzir catástrofe.

RUÍDOS NA COMUNIÇÃO DEMOCRÁTICA

O ouvidor do governo não consegue escutar o porta-voz da oposição

CONTRATO DE NAMORO

Meu Deus! A poesia morreu asfixiada!

VAGA-LUME

A vida dói e cintila.

EXCLUDENTE DE CULPABILIDADE

Era um talento extraordinário e uma pessoa intragável, mas sempre adorei aquele artista. Um dia uma amiga indagou: — Como você pode gostar daquele artista sabendo a pessoa que ele é? Sem pensar muito, respondi: — O artista que ele é não tem culpa da pessoa dele.

HISTÓRIA DA PSIQUIATRIA
a Juarez Bessa

Antigamente os pacientes fugiam dos psiquiatras; hoje os psiquiatras fogem dos pacientes.

NORMALIDADE

De perto ninguém é normal, conforme sentenciou Caetano Veloso (se não me engano), donde se conclui que a normalidade foi invenção da loucura.

LUGAR COMUM

Conhecido de todos e frequentado por ninguém.

ATO IMPENSADO

Vitória da emoção sobre um exército de aproximadamente 86 bilhões de neurônios.

NATUREZA BISSEXTA

O ser humano deu certo nas exceções.

DILEMA FILOSÓFICO

Nada é por acaso e o nada não tem propósito.

OLHAR INFANTIL

Lá vai o tudo e o nada fazendo o mundo girar.

VÍCIO

A literatura é um vício de tal dependência que se criou um grupo de autoajuda: o clube do livro.

ALIENISTA

Na era das angústias, o poeta foi diagnosticado com o transtorno da beleza.

CIRCO MAMBEMBE

O circo da minha infância era o circo de Soleil com o encanto das carências.

GIRO LINGUÍSTICO

Sujeito e objeto precisam se conhecer.

METAFÍSICA

O aluno estava há dias em comiseração, temeroso com os exames:
— Professor, quando vai ser a prova? Estou com medo de não passar?
E o velho professor de metafisica com naturalidade e voz aveludada:
— Não se preocupe com isso: passar é nosso destino.

UMA PENA

Sexualidade, poesia na sua mais pura magia – e tão vulgarizada.

VIOLÕES

O violão de Turíbio Santos foi presente do anjo que inventou a harpa, um velho conhecido de Villa-Lobos, que lhe foi apresentado por Donga, Ernesto Nazareth e outros chorões.

MONÓLOGO

Anísio começou análise por não saber o que fazer da vida e o analista era ortodoxo daqueles que nada dizem ao analisado. Foram 3 anos em que só Anísio falava e o analista só ouvia. Um belo dia Anísio, eufórico, anunciou ao analista: — Descobri que quero ser ator para fazer monólogo. Obrigado por tudo. O senhor salvou a minha vida. O psicanalista esboçou um discretíssimo sorriso.

FILOLOGIA NO WHATSSAP

Recebi a seguinte mensagem no whatssap: “Estou feliz, pois consegui entender as mensagens que recebo: bfds = bom final de semana; vsf = vai ser feliz; fdp = flor de pessoa”. Ao que respondi: — Pois é: a vida é uma questão de hermenêutica. Bfds: vsf, fdp.

INVENÇÃO DA MEIA IDADE

Os humanos inventaram a crise da meia idade como se soubessem do seu próprio prazo de validade.

MISTÉRIO DO NARRADOR

Ontem à noite me aconteceu uma coisa (…) uma coisa que jamais tinha me acontecido (…) sabe aquela coisa inesperada? (…) assim se deu a coisa (…) e a coisa parecia não acabar nunca (…) uma coisa misteriosa.

INTERPRETAÇÃO

Os leitores ensinam ao escritor que ele não sabe o que diz.

INCERTEZAS

— Não tenho certezas de nada. — Nem da morte? — E a vida eterna?

MESQUINHARIA

A redondilha maior e a redondilha menor se intrigaram por causa de duas sílabas.

TALENTO

Quando Cervantes se fez de louco foi consagrado como gênio; quando me fiz passar por louco fui diagnosticado como Dom Quixote.

A SAÍDA

A coisa tá tão complicada que o fim do mundo é a única esperança.

PATADA

A vida adulta deu uma patada na infância.

PAZ, UM DELÍRIO

Quando a gente morre, incomoda os outros.

ÚNICA VERDADE DA VIDA

(…) pode até ter pensado, mas o silêncio nunca disse uma bobagem.

ERRO METODOLÓGICO

Não se deduza que o irônico esteja sempre de bom humor: ele pode ser apenas um sujeito inteligente.

SEMPRE ESSA DÚVIDA

Será que depois da decepção de Deus com Adão e Eva, Ele não flexibilizou demais o controle de qualidade?

DIÁLOGO DE FOFOQUEIRO

— Quer saber de uma coisa?
— De todas.

SUPERLATIVO DE ABISSAL

Haverá lugar mais insondável que o oco do mundo?

FORMAÇÃO

A escola foi o lugar que perdi a inocência; a faculdade, onde encontrei o tédio.

PROSPECÇÃO

Se você namora com intenção de casar e ter descendentes, deixe de ser egoísta e não pense apenas em sua mulher e em seu marido: pense, sobretudo, em quem será a mãe ou o pai das crianças.

AXIOMA

A carência criou o amor e o mundo inteiro.

HIPÓTESE

Quando a lógica se enamora da imaginação.

O PROBLEMA

A rima ou é vulgar ou o ouvido reclama.

CONFISSÃO AXIAL

Inveja daqueles que nascem e morrem sem perguntar: por quê?

OS MEDÍOCRES

Os medíocres vieram quando Deus cansou da artesania que resultou em Adão e Eva e se rendeu à revolução industrial produzindo em série.

CONVERGÊNCIA

Alguém sabe de algo mais elegante e mais desengonçado que a girafa?

ROMANTIZAÇÃO

Todos pensam que o poeta é o mais feliz dos humanos: só ele sabe da angústia de conviver com tanta brutalidade em meio a tanto desperdício de beleza.

ANGÚSTIA

O psicanalista não é meu amigo e eu não tenho nenhum amigo em quem confie tanto e com disponibilidade em ouvir meus problemas: eis aí minha angústia.

NÃO VALE A PENA

Quando a gente começa a pensar na passagem de nossa espécie sobre a Terra, logo chega à conclusão que é melhor mudar de assunto.

A IRONIA E O SARCASMO

A ironia e o sarcasmo moram juntos. Quando a ironia não se veste de delicadeza para receber a visita, o sarcasmo vem à sala de pijama, bocejando e falando alto.

O TEMPO DE CADA UM

Cada um tem seu tempo: o tempo do procrastinador é depois.

UMA SÍNDROME TALVEZ

Tenho me sentido cada vez mais sozinho e cansado quando estou com outras pessoas. E o mais estranho é que certas pessoas têm me dado uma preguiça estranha (seria isso recíproco?): uma sensação de que a lógica e a sensibilidade se tornaram belas inutilidades.

EQUIVALENTES

Um sonho triste equivale a uma noite mal dormida.

SUFICIENTE

O beija-flor nem precisava voar parado no ar: bastava ter esse nome.

CONVERSA COM FERNANDO PESSOA
a Carlos Evandro

— Não sou nada. Nunca serei nada. Não posso querer ser nada. À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.
— Afora todos os sonhos do mundo não pensei em mais nada.

OUTRO DIÁLOGO COM FERNANDO PESSOA
a Lourival Serejo

— O Tejo é mais belo que o rio que corre pela minha Aldeia. Mas o Tejo não é mais belo que o rio que corre pela minha Aldeia. Porque o Tejo não é o rio que corre pela minha Aldeia.

— O igarapé do meu povoado é mais belo que o mar.

CONVOCAÇÃO

Nunca pensei em ser poeta: foi a poesia quem pensou em mim.

NO PRINCÍPIO ERA O VERBO

Recentemente os cientistas identificaram dois átomos conversando: a cada dia a ciência vai se convencendo de que o universo é criação da poesia.

RECATO

O fantasma sempre envolto no lençol para não mostrar sua nudez.

DESTINO

(…) e a vida seguiu (…) não se sabe de onde nem para onde (…) nem por que (…)

GRANDES MESTRES DA FICÇÃO

Não criam nada; só inventam, mas parece que o mundo volta ao Gênesis.

NOS TEMPOS DO GOOGLE

O guri de 4 anos aborda o pai: — Pai, o que é pogola? E o pai para não perder a autoridade intelectual: — Uma flor que existiu no Egito Antigo. E o garoto espantando: — Pai, tu sabe de tudo mesmo, porque o google disse que essa palavra não existe.

SUPREMA DELICADEZA

(…) aquilo que nem se nota.

FANTASIA

Sabe mentir com tal maestria que nunca se desconfiou que tivesse dito uma verdade.

EM FAMÍLIA

Disseram que nada que escrevo é genial. E daí? Acaso tem algum gênio entre meus leitores?

A ARTE

A mentira tem seu lado bom e verdadeiro.

POEMA EM TRANSPIRAÇÃO

A bela moça da academia transpira o poema.

FIDELIDADE

Se eu abandonar a poesia serei traficante como Rimbaud: não de armas, mas de diamantes para me manter fiel à beleza.

SONS DE CARRILHÃO

Os sinos varam as tardes para recolher o silêncio sem tocar a gente.

NUVENS

Queria tanto ser pragmático como os outros homens: mas é que vi as nuvens, sabe?

AUTISMO

Poeta, autista que tenta ao extremo se comunicar com o mundo pelas margaridas.

CONTRA-ATAQUE

Minha única vitória sobre o mundo foi não me deixar embrutecer.

O CADÁVER DE CADA UM

Assim que o jovem poeta tomou conhecimento da internação do velho acadêmico, já debilitado, passou a acompanhar o boletim médico diário e, depois, extraoficialmente por intermédio de uma enfermeira amiga. E assim, antes mesmo que alguns familiares soubessem do desfecho trágico, o jovem poeta já telefonava para o presidente da Academia de Letras, seu padrinho ao pleito da glória. — Você já soube que ele morreu? Ao que o presidente da Casa experiente nos escrutínios respondeu em tom grave: — Mas se eu fosse você não ficaria tão entusiasmado: esse cadáver não é o seu.

TRINCHEIRA

A arte é a minha trincheira mesmo em tempos de paz (se eles existissem).

FINGIDOR

Cúmplice leitor, esse verso macio e colorido nunca dirá de toda angústia.

ESCONDERIJO ENCANTADO

Ah como admiro os sorridentes, os descolados: só sei sorrir para dentro.

SINAL DE NASCENÇA

Os poetas têm uma rachadura na alma.

MÉTODO

Para saber mentir a primeira coisa é conhecer a verdade.

CONVICÇÃO

A maior virtude do grande mentiroso é a convicção.

A CASA DE BABEL

Renato comprou o terreno tão sonhado e planejou a casa. Não era engenheiro, mas tinha gosto pela coisa. Começou a construção e a cada amigo que passava anunciava a boa nova. E aí o amigo dava o seu pitaco: — Esse quarto devia ser menor e a cozinha está pequena. Disposto a ouvir todos os conselhos, fazia e desmanchava e em cinco anos nada da casa pronta. Renato resolveu comprar o terreno em frente nas mesmas dimensões e iniciou a nova construção. Quando as paredes começaram a subir, apareceu um amigo: — E aí, Renato, fazendo outra construção? — Pois é, respondeu um Renato seco. — Se eu fosse você, Renato, derrubava essa parede e aumentava o jardim de inverno. Renato fuzilou o amigo com o olhar antes de dizer: — A casa de vocês é aquela do outro lado da rua.

TERRA DEVOLUTA

Se meu coração não fosse possessão do mundo, eu te daria em usucapião.

SINAL DE ALERTA

Meu Deus, por que tanta pressa, se no final da estrada lá está o muro do cemitério?

A PALAVRA E O MUNDO

Por ocasião da vacinação contra o coronavírus, o gestor da saúde de Teresina revelou sua estratégia nessa frase: “Mulheres vacinam (sic) cedo para voltar pra casa e fazer o almoço”. Bem (aliás, mal): não se pode negar que a estratégia copiou a realidade. O gestor não a inventou (espero que ele não concorde com essa tradição machista). Fato é que o mundo desabou e lhe caiu na cabeça. Sim, a palavra é um símbolo que emite símbolos ensinou poeticamente Octavio Paz. A palavra pode, pois, ratificar atitudes (certas e erradas). Mas a palavra – por si mesma – só promove mudança no universo lúdico: quando o poeta diz, por exemplo, poço o significante se transmuta e o abissal no mistério da alma cintila. Enquanto escrevo, inúmeras reclamações trabalhistas (com fundamentos) de várias mulheres empregadas domésticas (sem folga no dia da vacinação) tramitam na Justiça do Trabalho contra o coro daqueles que empurraram o mundo sobre a cabeça do senhor gestor. A escravidão e o patriarcado deixaram uma nódoa que entranhou na sociedade brasileira e que ainda não foi removida. O mundo real, o das injustiças (o machismo entre elas em lugar de destaque), só se transforma sob o comando da ação: aqui a palavra no máximo pode catalisar o comportamento, mas ela sozinha é um desenho no papel ou um som no ar. Lembra o Evangelho que João Batista foi aquele que pregou no deserto (e o deserto pode estar povoado de corações vazios). Mudança social se faz com ação governamental (educação-conscientização, inclusão, qualificação, etc) e, sobretudo, compromisso social (e não pelo inverso como pensamos e gostaríamos). Cancelemos, pois, o gestor e sua frase – que agora é moda e procedimento sumário – e vamos dormir em paz. Após o movimento de rotação se completar no Brasil, no nordeste e no Piauí as manhãs se abrem com a maioria das mulheres na cozinha. Já o poeta pode dizer: a luz se derramou nos olhos da noite e veio a manhã do novo dia.

A GUERRA

O gênero de nossa espécie é o humano. Os homens – com o aval do Homo sapiens (invenção dos homens, diga-se de passagem) – se arvoravam de gênero da espécie. As mulheres se consideraram discriminadas e levantaram a questão de gênero. Mas deixa que o gênero é só um pacificador derrotado.

ARMÍSTICO

As diferentes carências reconhecem a igualdade diante da completude.

GENEALOGIA
a Dilson Lages

Adão era o marido; Eva, a mulher. Quem seria a serpente?

O SILÊNCIO EM AZUL
a Elmar Carvalho

O whatssap é um troço terrível quando você envia uma mensagem e ficam aqueles dois traços cinzas lhe dizendo da angústia de não saber se o destinatário leu ou não a sua mensagem (principalmente estando o receptor on line). Nessas horas é um bálsamo quando aqueles dois tracinhos dizem o silêncio em azul.

DO CONTRA

Os ateus e agnósticos não creem em Deus, mas no acaso.
O acaso, tal Deus, é onipotente, onisciente e onipresente.

ATRAVÉS

Quando o aluno disse que conheceu a poesia sacra através da igreja, o professor de literatura medieval pôde ouvir todos os vitrais da catedral de Chartres se partindo.

PARÁFRASE

Tem-se na paráfrase a excludente de ilicitude do plágio.

INJUSTIÇA

O dia todo tarefas e a noite só um sonho.

DEFESA DA MORTE

Não tenham medo de mim: não iludo mais que a vida.

ESPERANÇA

Até os pessimistas esperam pelo amanhã.

FRESTA

A poesia é o azul que te visita na escuridão.

IMPOSSÍVEL PLENO EMPREGO NO MERCADO DA MALDADE

No mundo da maldade há gente capaz de tudo e ainda sobre gente.

ESTACIONAMENTO ROTATIVO

A verdade é a dúvida que estacionou.

SUAVIDADE

Debussy soletrou seu próprio nome ao piano.

DISSIMULADO

O aforismo é um poema encabulado.

VIGÍLIA ETERNA

Durmo o quanto posso: sabe-se lá se a morte não é a vigília da eternidade.

ÀS AVESSAS

A inveja é o elogio mais sincero do mesquinho.

AVISO DA VIDA

Lamento informar, mas ninguém vai saí dessa vivo.

OVO

A palavra ovo começa e termina com O e a letra O não tem começo nem fim.

ANSIEDADE

A ansiedade teima em ver o amanhã antes da aurora.

ESTRAGA PRAZER

Escrevi o poema convicto de querer consolar o leitor,
mas o crítico o convenceu de que desejei lhe atordoar.

O INVENTOR DO MARKETING

Em 1940, Seu Osório, o farmacêutico, assim se referia às pílulas de vida do dr. Ross:
— Serve para tudo enquanto e outras tantas outras coisas ainda desconhecidas.

PÓS-VERDADE

Adoro ver alguém mentir, mas mentindo com tal convicção que aquele pequeno receio de ser aquilo mentira vai se diluindo quanto mais lhe aprovam os ouvintes.

DEPRESSÃO

A depressão pode acontecer a qualquer um. Ora, tem dias que nem a poesia quer dar as caras (…) imagine (…)

TERAPIA DE VIDAS PASSADAS

Na sessão de terapia de vidas passadas, o bibliógrafo descobriu que em 1501 foi uma traça voraz na abadia de Corvey, no noroeste da Alemanha.

MISTÉRIO DESVENDADO

Para os poetas as palavras não fazem o poema:
elas preenchem as entrelinhas dos abismos.

DESEMPREGO EM MASSA DOS VIDENTES

Dada à velocidade do mundo de hoje, sabemos das notícias antes dos acontecimentos.

ALTO NÍVEL

Intelectuais beligerantes adoram ler Shakespeare para fazer intriga em alto nível.

OLHARES VICIADOS

Os clientes do bar foram ao proprietário reclamar que tinha um buraco no azulejo do banheiro: o poeta foi avisá-lo de que viu uma borboleta no toalete, ao pé da pia.

BÁLSAMO

Não creio haver maior prazer que a gente está com alguém que sabe mentir à fresca:
a rigor, mentir à fresca é estágio de tamanha beleza que nenhum verso lhe ombreia.

MISTÉRIO SUPERLATIVO

Há qualquer coisa de alguma coisa naquela coisa.

LÚDICO

Impressionante a capacidade que tem a vida de se desviar do lúdico e criar engarrafamentos.

BIOGRAFIA DO POETA

Viveu a paz em toda a sua plenitude até conhecer o verso.

FUNÇÃO

A palavra na poesia é como o tijolo na parede adornada cuja única função é desaparecer para mostrar outra coisa.

VISITA

Na porta de minha casa, o seguinte diálogo: — Ah, então o poeta mora aqui? — Não, não. Nem sei onde o poeta mora: ele apenas me visita de vez em quando.

NOTURNOS

Os anjos aprenderam a lira ouvindo os noturnos de Chopin.

HISTORIOGRAFIA

O direito de permanecer calado foi reconhecido primeiro aos poetas e depois estendido aos demais suspeitos.

TRAIDORES

Não faças concessões publicando poemas por liberalidade e compaixão: são eles que irão à praça pública ri de ti pelas costas, incitando o ridículo a pandega até que o tempo lhe retribua com o esquecimento a caridade que esses mal-agradecidos não tiveram.

RISCO

O verso livre, tal qual a liberdade, num descuido, pode botar tudo a perder.

A SALVAÇÃO

A vida literária é tão mesquinha quanto qualquer outra: a salvação está na literatura.

FAÍSCAS

A poesia não é feita de palavras, mas de suas faíscas refletindo lâminas.

LEGADO

Aquela conferência pomposa e barroca foi o maior legado do vazio ao nada.

VERDADE NA MENTIRA

Só a literatura tem a coragem de contar mentiras que a verdade só vai te dizer anos depois.

FORÇA DA INUTILIDADE

Deprimido fui ao teatro e a peça era de tão profunda inutilidade que me convenceu da existência de vida depois do fundo do poço.

FALABILIDADE DIVINA

Ontem: — Meu Deus, que calor é esse?
Hoje: — Jesus, e agora essa chuva: como vou secar essa roupa?

MERA QUESTÃO ESPACIAL

Os personagens vivem dentro dos livros com seus conflitos; nós em casa, apartamentos e dentro da alma.

ATAVISMO

Alguns poetas são capazes das maiores atrocidades: por vezes espremem o banal até dele extrair um lírio.

ELEGIA

A vida é um beco sem saída que esbarra no muro do cemitério.

ETERNO RETORNO

A vida é assim: Deus vem e faz o bem e o Diabo, por seu lado, estraga as coisas. Veio Deus e criou o whatssap e o Diabo criou os grupos.

EVANGELHO NO PARAÍSO

A designação das coisas só existe no seu contrário (…) no paraíso o amor é um sentimento tão profundo que perdeu seu nome e significado.

VANTAGEM

A vantagem do livro sobre o amigo é que aquele só desabafa quando somos todos ouvidos de coração.

O DIABO

Deus fez o mundo e se recolheu; o diabo que não fez nada se danou a botar defeito em tudo e a dar pitaco.

QUESTÃO DE ALTA INDAGAÇÃO

O poeta morreu. E agora? Ele não pode ir para o outro mundo: ele já veio de lá.

ESMERO

Escrevia tão mal e com tal esmero que merecia ser o gênio daquele estilo.

LÁ VAI O GOVERNO

Na cidadezinha não havia aeroporto, mas era rota de avião e toda vez que via uma aeronave no céu, Seu Osório dizia: — Lá vai o governo: passa por cima da gente e nem nota.

PRECE DO POETA

— Oh meu Deus, fazei-me como os que aceitam as coisas, os outros, a si mesmo e creem que no fim de semana a vida sofrerá uma transfiguração.

SÍNDICO

Quando vejo alguém se candidatar a síndico do prédio, um sopro de altruísmo vem acalentar minha alma cética.

CADA TEMPO

O neto entrou no escritório viu o avô ouvindo o conserto 21 para piano de Mozart e perguntou: — Que troço é esse vô? — Um tempo em que havia música. E o neto saiu repetindo o refrão do mais novo MC e pensando: — Já houve cada tempo estranho no mundo!

CICLO LITERÁRIO VICIOSO

Os poetas consagrados leem os clássicos; os críticos, os poetas consagrados; as traças, os poetas de província.

ORAÇÃO COM PEDIDO ALTERNATIVO

— Senhor, se não puder me conceder o estágio zen dos monges budistas, dai-me ao menos a paciência dos picineiros.

ASSÉDIO

De tanto o cata-vento perseguir o vento, o vento encheu o saco e olhou zangado para ele: — Sabe de uma coisa, cara, vai te catar.

ETERNA BUSCA

Quando criança meus pais diziam que eu precisava estudar para ser alguém, aí veio a crise existencial e meu analista disse que eu preciso ser eu mesmo.

SEM CHANCE DE LUCIDEZ

Se ainda existissem os hospícios fora da cidade sem internet, whatssap, instagram, twitter, haveria uma chance para a lucidez.

MANIA DE GRANDEZA

— Por que será que ele usa tanto dois pontos?
— Você o conhece: sempre com mania de grandeza.

CÉTICO

Verdadeiro poeta indaga afirmando como quem desconfia dos outros e de si mesmo só tem incertezas.

DITADO LITERÁRIO

Mais teimoso que o segundo livro de um poeta de província.

NOVA ÍLIADA

Um poeta de máscara é motivo para uma Íliada entre a hipérbole e o pleonasmo.

FÉRETRO

Haveria palavra mais solene, grave, a casar com perfeição significado e significante? Algumas palavras me dão a impressão de que já existiam antes da criação do mundo.

LIMITES ULTRAPASSADOS

A vida pública ficou constrangida ao encontrar a privacidade e a intimidade fazendo nudes na praça do centro da cidade às 11h de segunda-feira.

SEXTA-FEIRA

Na sexta-feira Deus fez a poesia com todos os encantos da sedução: e não importa se nada acontece, porque não há maior bálsamo que a espera das epifanias.

QUEBRA DE PARADIGMA

A pandemia quebrou o dogma freudiano do divã e os analistas passaram a fazer atendimento on line: penso que Freud negociaria, desde que isso não evoluísse para atendimento por mensagem de whatassap com direito a imagens de emoji.

GAUCHE

Os poetas jogam a vida nas inutilidades essenciais.

PARA NÃO SE LER EM DIA DEPRESSIVO

Nada escapa à morte: nem mesmo este desprezível epigrama.

CAVALHEIRO

Quando escrever a uma mulher (mesmo um memorando)
te mostra apaixonado, mas de tal modo, que ela não perceba.

NOVES FORA

Tirando o poema, o que restará? O relógio de ponto.

EXERCÍCIO DE EVOLUÇÃO ESPIRITUAL

Ame o outro, mesmo quando ele estiver muito próximo.

ERRO DE BASE DO LIVRE ARBÍTRIO

O livre arbítrio é puro arbítrio: não nasci por opção e assim não morrerei.

CATARSE

Quem conversa sozinho, dificilmente enlouquece e perde o amigo.

PONTO DE RETORNO

A nudez feminina tornou-se tão banal que ando em busca das revistas do século XIX para escrever um poema erótico.

CHOPIN

Chopin foi um anjo que além de asas tinha dedos de pluma.

AS DUAS FACES DA SOLIDÃO

É madrugada e eu aqui numa baita solidão lamentando por não ter ninguém comigo. De repente reparo a luz acesa no escritório do Dr. Osório Vargas, meu vizinho cujo apartamento é no bloco em frente ao meu. Chego a ver Dr. Osório assobiando e depois sorrindo à mesma hora em que dorme Dona Matilde, sua esposa de voz esgarçada.

TRÁGICO

Poeta é o sujeito que se lançou em busca de uma identidade, perdeu a que tinha, mas guarda esperança no próximo verso.

DISFARCE

Aqueles filetes de água (…) aqueles instantes das tardes mornas (…) o enroscar da lua nas bananeiras para depois se mirar no poço (…) as cadeiras e a prosa na calçada sob a constelação de Touro era – só agora sei – a felicidade disfarçada.

MENÇÃO HONROSA

Prêmio de menção honrosa se constitui na mais sofisticada polidez da recusa.

FILHOS

Filhos são como passarinhos: adoram comer da nossa ração, mas só pensam em voar.

IRÔNICO

O irônico só consegue rir para dentro: no fundo sente um infinito desprezo pelo vulgar do humor mundano.

MAL-AGRADECIDO

O sol festejando a vida, a brisa beijando o azul, as nuvens bailando o inesperado das formas: o mistério todo aos olhos. E a gente: — Que tédio!

AMOR

Motor que tudo move e tudo paralisa.

FILOLOGIA

Amar é tão delicado que a palavra amor parece feita de cristal.

GRÃO DE AREIA

Desculpe, vida: a tua imensidão me esmaga.

QUEM SOU

Só um menino assustado dentro do mundo feroz.

RESISTÊNCIA

Não, meu caro Freud, os amores irrealizados não ficam no recalque (que nome mais feio você foi arranjar para abrigar os desejos mais ardentes): eles migram para formar as subpartículas mais delicadas, cintilantes e invisíveis do infinito.